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quarta-feira, 24 de outubro de 2012

para um amigo

a gente se perde, um dia
sobre a beliche, um dia cai

o monstro sob a cama
vai acumulando tropeços, descasos,
vai, enfim, virando
o monstro que ninguém é
nem ele

nem eu
nem você

acomodados no colo do monstro
acabamos gostando dele, que nos nina
por isso nós sempre gostamos de ser monstros
e vivemos uma linda amizade desde então

ora, os astros e as cidades
nos separem quanto possam
após levar a lambada da vida
em vírus e lutos e futuros
pretérito, não sou eu
que vou dizer NÃO aos quilômetros
NÃO ao cansaço, um "sim" quase mudo
a você

aceito, resignado, que o meu tamanho no mundo
é 1m84
com margem de erro de um centímetro
para mais ou para menos
mas não margem de erro do rio da Prata

a nós ninguém deu essa margem tão
larga

meu braços não alcançam meu coração
que está contigo. antes eu diria
tudo isto. agora escrevo,
é o bastante. nada convence
que a nossa amizade seja margem
errada. a água brota, evapora, transforma
em fundo buracos onde habitam bichos
bichas insuspeitas. é muito bom, até na água,
estar contigo


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

a escrita é materialmente determinada

faziam
na china
o da zi bao
significa
"grande palavra"
sendo "palavra"
me lembre
"condenação"
o lugar onde escreviam
os crimes que cometera
o prisioneiro de pescoço e mãos
entre as tábuas, praça pública,
e toda a gente vinha ler
o que de ruim tinha acabado

depois
a revolução socialista
usou essa técnica
sem preso
pra socializar a informação
de modo que o da zi bao virou
um grande jornal
em muro todos liam
escreviam
as notícias, as doutrinas, propagandas

nunca
talvez ninguém vá ler
muito as coisas que eu escrevo
sendo eu não a china socialista
mas imaginados chineses
almanaque curioso
das coisas vastas do mundo
em linguagem cifrada, sozinha
arrevolucionária

depois
quem sabe as ordens que virão
papel houver e impresso as graças
do gosto do povo
se em consumo, guerra, tristeza ou prisão
me angustia o presente metade
cartola fajuta aluguel projeção
políticas públicas de incentivo à leitura
terceiro setor, drummond, brecht, camões
este hoje oposto a si
tanto quanto a china que eu não sei

quero
achar entre as algas dos olhos
se enroscam nos dedos motivo
continuar existindo e fazendo
coração membros medula fígado
mantê-los pelo máximo possível de tempo
como quase toda gente consegue
e as palavras esteio, escuro ou paisagem
a vez de viver sem fracasso no meio
e possível, quem sabe, saber bem
chinês

estímulo ao voo

a menina

num empenho de vontade, das boas, dizia "voa"

Voa!

alegre, olhando o passarinho

súbito solto da gaiola, por mãos que afagam

sem tocar, afeto o olho, a palavra com carinho, "voa,

bebezinho!"

a mãe se visse, você pensa, insatisfeita

de perder seu periquito, tanto salário aquele alpiste

acordar e ver o verde, o amarelo, ouvir o canto e a criança

agora, atuando contra ela: dando ao que é do mundo

o mundo que antes era só de César.

você não sabe a história inteira.

se esconde no seu casco, medo, tempestade:

o jabuti da família empurrado com o pé

"Voa, querido!", jogado para cima

Quantas vezes

(meu deus!)

o amor pelo jabuti

vai ser instância de pássaro

estímulo ao voo

do outro, passamos

remédio nos meios quebrados ferida do casco

mostrar as diferenças entre répteis

e pássaros, sucesso de cura

parece (a menina

celebra) o jabuti

pôs um ovo

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

"O Brasil foi o criador da Operação Condor"




quando os mortos
dos outros contarem
entre os mortos nossos
os cemitérios falarão
"derrubem as paredes"
as valas sob escolas
famílias indústrias
quartéis e shopping center
tragados documentos
pela terra e devolvidos
indigentes os cadáveres
insurretos dirão (agora
é certo) "tudo é vosso
cemitério"


história natural

soube tudo
que podia saber sobre
os dinossauros
me cansei
aquém do engenho humano

interesse
desfazendo-se
feito o íntimo das ostras
quando morrem

abrem-se
seus músculos já não se importam
proteger-se, por mole o dentro
dissolvido em moléculas
do tempo

fóssil
do latim fossilis é
desterrado, extraído
da terra;
em chinês lê-se
化石
tornado
pedra

eu
nada
se fosse
palavra
latim derivar
submerso
no ar
ou em chinês
talvez
o ideograma de vento
com outro de carne

esse mole
umedecido dos dias, um dia
também vai se abrir, acabado
não mais tenso
o cansaço

tenho curiosidade
de saber quais as cascas
encontradas, será meu corpo de fato
um mistério, será
minha mente enfim
um minério

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Em meio à
Grande flora
De antes
Anda arrastando-se
Uma Preguiça
Gigante

Respeitável público
Moças da primeira fila
Este é o último exemplar
Do nada temível
Megatério
Outrora abundante
Em nosso hemisfério

a plateia
preguiçosa
não ri
com fominha
se pudesse
comia carne
de javali

As Preguiças também
Eram comidas
Por isso é que foram
Extintas

um grande estômago
corrói o futuro
das espécies

caímos da cama
no ácido gástrico
de bichos menores
que nós
a barata-d'água
no japão
chega a meio metro
de tamanho e ataca
filhotes de cobra e de tartaruga
vivos

Caçados esses
Dóceis animais
De Poderosas Unhas
Sumiram
Há 10.000 anos
Embora
Evidências
De um pequeno
Grupo remanescente
Em Cuba
Até 1500

o planeta está digerindo a gente


quarta-feira, 10 de outubro de 2012

era uma vez

uma parede

e atrás dela

o pai

e dentro dele

pulmões

e naquilo

ar

sentido inverso:

era uma vez

o ar

preso entre

dois pulmões

ambos dentro

do meu pai

e dentro dele

uma parede

(moto-perpétuo)

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

o fim da história da lagarta

foi no dia seguinte, mesmo, que a lagarta já tinha comido quase toda a folha de alface, que estava murcha irremediável, e quis sair do copo de vidro andando pelas bordas.

uma folha de couve, fresca por enquanto, não adiantou o apego. outra folha de alface, arrancada clandestinamente do pé, tampouco.

depois de muito considerar, quais hipóteses, minhas responsabilidades de carinho e de cuidado, o melhor era mesmo largá-la à sorte na natureza, bichos selvagens só foram domesticados depois de séculos.

no carro a gente fala da ração canina industrializada, feita para que o cocô fique pegável. mas os próprios caninos foram industrializados, embora um tempo que não havia indústria. se sumíssemos todos humanos, os cachorros soltos sem pedigree champ se comeriam poodles chihuahuas só os grandes viveriam, e mesclados, tornariam outra vez ao estágio lobo evolutivo, em matilhas caçando o que se atrevesse a humano, seus antigos donos.

também digo, convicto, que temos que matar tudo, todos os bichos. que eles não teriam dó da gente. uma barata gigante na ásia come filhotes de cobra e de tartaruga. caça-os, prende entre as garras, mata-os vivos e come. aranhas e escorpiões, desse tamanhico já nos caçam e querem tão mal. eu os mato com a tristeza e a honra dos sobreviventes, culpa cristã.

a lagarta, então, por afeto, joguei ela no lixo. se jogasse na horta, minha amiga brigava comigo. o luiz disse "a natureza em são paulo". implacável, medonha, miséria, não lembro qual adjetivo ele usou.

instantâneo

fotos de homens
bonitos cabelo
ao vento peito
aberto anos
setenta

abre
parêntese data
de nascimento
data de morte

ou hífen
sem nada
ou fecha
parêntese foto
do homem
hoje velho
se vivo

anúncio
"matou-se"
suicídio
em agosto de
2012
sem razão
aparente

fotos
de homens
bonitos
jovens hoje
2012

um menino
morto
de câncer
jovem, bonito
em 2003
ou 2004
2005...

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

outubro

o dia
abria-se em araras
calangos
capivaras

uso o imperfeito só pra entrar no assunto.
aqui no mato grosso do sul
no meio de tiroteio entre traficantes e polícia
aprendo com os gansos a ficar no lago molhando as penas
afunda o pescoço na água e depois volta, chacoalhando
pra cima

amanhã o dia
se abrirá em será que bichos?
encontro no fundo da mochila
(buscava uma cueca)
o diário de viagem
perdido

rabisco umas palavras
mal me animo

o banho de rio faz a gente entender
tudo sem saber de nada

mas é preciso sair do rio
voltar pra são paulo
/ voltar / de ônibus / avião /
fim das estradas

então escrevo pra uma amiga
há muito não vista
e dizem que anda fazendo cadernos

digo assim pra ela "oi"
e as saudades não deixam a gente se encontrar
mas uma boa desculpa é a encomenda

preciso de um novo diário