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terça-feira, 25 de dezembro de 2012

duas histórias de família (a embolia pulmonar de tia zezé)

1

o médico desenganou
disse que ela ia morrer logo
estava na uti, então o filho dela
o reginaldo, comprou um monte de cachaça
tomou tudo sozinho e morreu
um mês depois, a tia zezé estava viva
e agora até casou de novo

(comentário da minha vó:
é besteira perder as esperanças)

2

a tia zezé toda entubada
no limite da morte, inconsciente,
a gente ia visitar e ela começava
do nada, a cacarejar

"cocococóóó"

não sabia se ria ou se chorava

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

tradições

Faço isso: inaugurar a cada tanto uma tradição. Há gente que me compre: queira uma festa de família. “Festa de família não trabalho.” Se insiste, aponto a plaquinha na porta: aqui a tabela de preços, veja nossos serviços, não quer não quer, há quem queira. O telefone toca: encomenda uma canção pra tocar anualmente em memória dos próximos mortos. Diz que é um novo feriado do governo, precisa dela o quanto antes. Sento-me ao piano. Escrevo uma canção fúnebre para mim mesmo. Troco os nomes pra não parecer louvor próprio. Sonho abrir outro negócio: o de pôr fim a tradições.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

canção

extraído a bisturi seco foi
você guardado em vidro sobre o peito
quanto mais eu olho mais eu vejo
espelho

montanha
de e-mails argumentando
o seu regresso, príncipe sonho
rima enfadonha em cada verso,
a solução para o fim de tanta maravilha
é trancarmo-nos a sete notas numa ilha
de gravação

*

todos os cantores
meus contemporâneos cantam
a mesma coisa

o avesso serve
a vida é uma beleza
se você quiser
pôr delicadeza

vou ficar
mais um pouquinho
meu amor
mais um carinho

cada um é cada um
e cada um tem o que tem
o mundo acaba logo logo
melhor viver, meu bem

*

durante o festival
da nova música paulistana
que cheiro de vômito
é que os bueiros e as bocas
de lobo começaram a escorrer
vômito

examinaram na prefeitura
e constataram que era vômito

é engraçado
se você pensa
no dia seguinte
a gente teve
que continuar vivendo
nesta cidade
porque os empregos
nos esperavam
e pra muita gente
o subemprego
e você andava nas ruas
é até engraçado
e escorregava
e sentia o cheiro
de vômito

*

palavra dita
é palavra solta

palavra dita
é pessoa presa

se vendida
a pessoa é solta

*

li num muro
- se você não é ouvido
escreva


"People always clap for the wrong things. If I were a piano player, I'd play it in the goddam closet."

(The Catcher in the Rye)

domingo, 16 de dezembro de 2012

diário

o artista do zimbábue
owen maseko
foi preso por pintar
massacres do ditador robert mugabe

seu nome estampado
nos jornais da europa
serve de argumento
pela democracia burguesa
que segundo os jornais
não impede ninguém de pintar

*

no canadá, as pessoas
veem jogos sangrentos de hockey
comendo hot dog, com crianças
tranquilas; acham o futebol um jogo
de mulherzinhas porque os jogadores
não se espancam; em compensação
as torcidas

*

a poesia não é
uma arte do irracional
a poesia não é nada
além de palavras
e alguém olhando as coisas
do sonho do mundo
e alguém lendo palavras

*

onde foi que eu perdi o encontro?

*

uma hora marcada
à revelia da agenda
ninguém foi avisado
é assim que nos vemos
aí o encontro vai embora
e ficamos olhando um pra cara do outro
esperando um novo encontro

*

hoje não tem fernando pessoa
coitado do fernando pessoa
morrendo de cirrose, sozinho no quarto
coitado do van gogh
que cortou a própria orelha
e deu um tiro no peito
e três dias moribundo
dizendo pra theo ao seu lado
"a tristeza nunca vai acabar?"
coitada da ana cristina
que se atirou da janela
ensaboada pra que não segurassem
era a quinta tentativa?
coitada da sylvia plath

coitado do drummond
que morreu de velho
depois da filha, que morreu de câncer
e nunca matou ninguém
e foi sempre comportado o bastante
pra morrer de velho
coitado

*

se eu tivesse um canudinho
eu chupava você

sábado, 15 de dezembro de 2012

uma qualidade

"(...) mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos."

(Machado de Assis, advertência de Várias histórias)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

você sabe

fazendo tudo
o que te mandam
tem gente que vive
uma vida completa
absoluta
surpreendentemente
normal
no aniversário
de 50 anos do início do vírus
as manchetes os programas televisivos
meu sucesso um sorriso
e amigos parentes
o médico explica
a profilaxia necessária
apesar dessa vida
perfeita
intacta
inevitavelmente
vazia de acidentes

*

o homem que venceu
quatro cânceres
mais de quinze cirurgias
é um highlander
e a vontade de viver
no programa da tv

no que diz respeito a isso
e a demais assuntos práticos
sinto informar que não me sortearam
a garota do fantástico

*

o efeito
alguém avise
colateral do tratamento
além de:
osteoporose
diarreias
dores musculares
tumores etc.
mudar de ano
atrás dos sonhos
persiga os sonhos
o cuidado
o encosto
do corpo
as escolhas
o tédio
afinal
enfim
uma vida ampla
tola
p r e v i s i v e l m e n t e

normal

a vida inteira pela frente

tem gente
que vive
dez, vinte anos
muito bem
não fique triste
se cuidando
tomando os remédios
tem gente que vive
trinta
o triglicérides
vontade, trabalho
tem gente
que vive
tanto
você sabe
hoje em dia
se cuidando
pratique esportes
uma alimentação saudável
balanceada
saudável
tem gente
que vive
cantando
correndo
tem filhos
sorria
o riso é o melhor remédio
proteja-se
hoje em dia
você sabe
se cuidando
tem gente que vive
tanto
gente
que vive
todos
todos
os anos

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

"a vida se origina do desejo"

então
os bandos de papagaios
de cara roxa
voam de uma ilha à outra
alternam sono e fome
entre as ilhas
e o nosso
gosto por roxo
nos move até lá
como antes moveu outros homens
a abatê-los colocá-los em gaiolas
ensiná-los a dizer palavras
colocá-los em panelas, abatê-los
o desejo não tem asas
currupaco

sem
vontade de ver
comer ou ir
as ilhas afundam
no tédio da panela
penas verdes
nos brincos que o hippie vende
o rosto roxo
desse sol
esse além
esse aqui
botam a gente
sem origem como o
currupaco

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

cuecas

mesmo que niguém as veja
compra as cuecas mais bonitas
é bom tê-las delicadas, decorando
o corpo por dentro, te asseguram: é homem
pra ninguém botar defeito

às vezes você despe
as calças do trabalho
alguém te agarra carícia
debaixo do algodão
você endurece (ou não), baixa o elástico
e fica nu, sem nada que segure

o design se esmera em fazer panos
parecerem masculinos, funciona
modelos nas fotos quase não têm corpo
é assim que você deve ser
mas as cuecas amarelam, sujam
os pentelhos soltos tentando fugir
presos por hábito

cuide-se
querido
te entregam
nas mãos as namoradas
e as mães te deixam
pra vestir sozinho
esperando atrás da porta
perguntam: ficou bom?

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

o poder da poesia

eu escrevi um poema que rimava bicho e lixo e era sobre a professora. então eu mostrei pro menino mais popular da classe na esperança de ser como ele, já que ninguém da classe gostava da professora. o menino percebeu minha travessura e fez uma maior: entregou o poema à professora, que leu, olhou pra mim desde longe na mesa dela, perguntou com "foi você que escreveu isso?", eu fiz que sim com a cabeça, com vergonha, e deu o sinal do intervalo.

no intervalo eu orei muito, pedindo a deus que não me fizesse ir pra diretoria.

no dia seguinte a professora já não estava mais lá, e parece que não contou do poema pra ninguém. talvez por vergonha, era um poema muito violento. o menino também não contou do poema pra ninguém, talvez tenha até se esquecido dele. eu também não contei. veio uma nova professora, e as crianças que detestavam a anterior começaram a dizer que não gostavam da atual, que preferiam a anterior.

domingo, 9 de dezembro de 2012

como fazer bonito um hospital

não pense
nele
nem cheire
a doença limpa
pela memória

os doentes dizem
socorro e se olha
o que você quer

atrás
dos vidros nossos pais
irmãos, filhos, amigos
vão dizer
adeus
e você não ouve

o hospital rouba a voz
se não há como deixá-lo
bonito pra vista, cante
(enquanto pode)
que passa

sobre fotografia

a pele descoberta agora
encontra a sépia névoa
dos que não querem ver
que o corpo respira por fora
e é só contraste o que se mostra

deixem pra mim o pus
o sebo que brilha demais
e quem não tiver lugar

bem-vindxs
eu digo
e escrevo

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

as mordidas descem pelas paredes

e encontram o teu sono atento

à espera da deglutição

"como um sono pode ser atento?"

pois é, não durmo

nem as mordidas podem ser sem dentes

menos ainda descer pelas paredes

e você não pode ser deglutido

"pois é, não posso"

a espera cai de si as palavras

e o céu se mostra inexistente

sou só reflexo e gases presos

nessa barriga boba que é a terra

planeta, acaso as tuas posses

podem ser ditas sem que nos toquem

ou sofrer dá-se por dizer

sem que haja a coisa dita?

no entanto descem, as mordidas, das paredes

e vêm buscar meu sono atento, pra que

dentes o estraçalhem, façam-no

migalhas secas e insones, perdidas

mas ele queria ser deglutido

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

o porto

com a júlia

falando da vida

que é um monte de coisas

depois da ponte

de metal moderno e as gaivotas

cagando bombas

de piada à beira do douro

falando do amor

que é um monte de coisas

inclusive uma ponte

de metal moderno

e gaivotas

que cagam voando

e a gente acha graça

depois vai embora

porque não quer se sujar

entre as vielas

medievais

a igreja some da vista

as torneiras têm água tóxica

na cabeça uma agenda de encontros

um avião prometido entre as nuvens

metal moderno, gaivota

a júlia comigo

falando do rio

que é um monte de coisas

dentadura fixa

a dentadura era uma ideia

que às vezes caía da nossa boca

então compramos um gel fixador

e ela nunca mais despegou

a higiene das ideias é algo difícil de fazer

formam cáries as tuas ideias, e não mastigam muito bem

os dentes crescem para sempre

o que os impede é o atrito dos de baixo com os de cima

tiro a minha dentadura

ponho-a do lado, um conjunto em cada copo

separados pela cama, os dentes crescem e quebram os copos

minha dentadura de madeira como a de washington

cria raízes e quebra as calçadas de são paulo

o asfalto não detém a mordida

fico banguela enquanto os dentes

crescem e tomam em floresta a cidade

depois o país, quase o continente

antes que os eua os bombardeiem

e o atlântico de um lado, do outro, o pacífico

cessem a terra em que cresciam

*

ando só e desdentado entre as ruínas do ano passado

pra nutrição chupo o que aparece, e nisso viro autoridade

as crianças da aldeia me cercam para aprender a chupar

tirando os nutrientes necessários, evitando o veneno

*

de uma árvore nascem dentaduras

quando estico um braço pra alcançar uma

os dentes tilintam do topo da árvore

e dizem, suas vozes de frutas

"morde morde morde"

acordo tão assustado que minhas gengivas sangram

do bruxismo que não cede à ausência dos dentes

dormi sob a árvore do cão

se olho para cima, os dentes latem

*

antes as ideias adubavam o solo

agora amadurecem nas copas e preparam

a queda que estilhaça o doce em sementes

animais silvestres as comem e levam em fezes

plantações dos mesmos dentes a outras paisagens

as ideias crescem até onde a vista alcança

se um viajante incauto deita-se sob elas pra descanso

acorda mastigado e digerido

depois, as ideias cantam