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sábado, 10 de novembro de 2012

os dentes resolveram abandonar a boca

porque a boca não podia abandonar os dentes

e algum abandono era fundamental à história

embora língua campainha gengivas tenham ficado

todas formando, com glândulas e lábios,

aquilo que ainda pode ser chamado de boca

ninguém beijava ou escarrava nela mais

nem a Ingratidão, essa pantera,

fora solta do zoológico

e correu pro interior

antes que seus caninos também a abandonassem

outra vez a boca:

queria ir a Roma, mas não foi possível

a Europa, sabe, está numa puta crise

não tão ruim quanto a África

mas definitivamente pior do que uma boca sem dentes

que ainda pode, na alegria brasileira,

cozinhar os legumes da feira, tomar uma sopinha

e sorrir no quarto escuro

*

Meus queridos dentes,

deixo este bilhete

caso vocês voltem

e eu não esteja

me esperem

por favor não fujam

outra vez

estou no rádio

arranjei trabalho

canto cabaré

quero roer osso

não aguento mais chupar

o dedo do pé

na geladeira tem queijo

fiquem à vontade

fiquem

faremos mordidas e beijos

*

Pai!

(o velho não responde)

Pai, acorda!

(acorda assustado)

Quê?! Oi?! Hein?!

(ufa)

Você tava gritando. Teve um pesadelo?

(ufa)

Tive...

(acordando)

Sonhei que eu não tinha mais dentes.

(não sorri)

Mas você não tem mesmo.

(a pantera volta do interior

toca a campainha)

Espera um pouco.

(vai lá ver)

Ah!

(se eu tivesse dentes)

Ah!

(a pantera entra

e chupa os dois)

*

fixação oral:

também posso dizer

às futuras gerações

do meu medo de perder

olhos, quereres, testículos

cabeça, ombro, joelho, pé

pai, patrão

eu

*

querida boca,

não te queremos mais

infelizmente estamos presos

que nem as árvores

o planeta gira gira roda

e elas lá, nas suas raízes

dá uma vertigem

estar preso

em algo que gira

oi

não gostamos mais

de ficar no escuro

molhados

com essa língua babona

de síndica

mas que se há de fazer?

*

Pai!

Pai!!!

Quê?! Oi?! Hein?!

Você tava gritando. Teve um pesadelo?

Dim-dom

Perae, tocaram a campainha, vou atender.

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