os dentes resolveram abandonar a boca
porque a boca não podia abandonar os dentes
e algum abandono era fundamental à história
embora língua campainha gengivas tenham ficado
todas formando, com glândulas e lábios,
aquilo que ainda pode ser chamado de boca
ninguém beijava ou escarrava nela mais
nem a Ingratidão, essa pantera,
fora solta do zoológico
e correu pro interior
antes que seus caninos também a abandonassem
outra vez a boca:
queria ir a Roma, mas não foi possível
a Europa, sabe, está numa puta crise
não tão ruim quanto a África
mas definitivamente pior do que uma boca sem dentes
que ainda pode, na alegria brasileira,
cozinhar os legumes da feira, tomar uma sopinha
e sorrir no quarto escuro
*
Meus queridos dentes,
deixo este bilhete
caso vocês voltem
e eu não esteja
me esperem
por favor não fujam
outra vez
estou no rádio
arranjei trabalho
canto cabaré
quero roer osso
não aguento mais chupar
o dedo do pé
na geladeira tem queijo
fiquem à vontade
fiquem
faremos mordidas e beijos
*
Pai!
(o velho não responde)
Pai, acorda!
(acorda assustado)
Quê?! Oi?! Hein?!
(ufa)
Você tava gritando. Teve um pesadelo?
(ufa)
Tive...
(acordando)
Sonhei que eu não tinha mais dentes.
(não sorri)
Mas você não tem mesmo.
(a pantera volta do interior
toca a campainha)
Espera um pouco.
(vai lá ver)
Ah!
(se eu tivesse dentes)
Ah!
(a pantera entra
e chupa os dois)
*
fixação oral:
também posso dizer
às futuras gerações
do meu medo de perder
olhos, quereres, testículos
cabeça, ombro, joelho, pé
pai, patrão
eu
*
querida boca,
não te queremos mais
infelizmente estamos presos
que nem as árvores
o planeta gira gira roda
e elas lá, nas suas raízes
dá uma vertigem
estar preso
em algo que gira
oi
não gostamos mais
de ficar no escuro
molhados
com essa língua babona
de síndica
mas que se há de fazer?
*
Pai!
Pai!!!
Quê?! Oi?! Hein?!
Você tava gritando. Teve um pesadelo?
Dim-dom
Perae, tocaram a campainha, vou atender.
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