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domingo, 30 de setembro de 2012

menor


cálculos
matemáticos
também não são
o meu forte

na escola
errava até de calculadora

as palavras
descubro
merecem,
pra quem as merece,
um exato cálculo
e o poema é uma equação

não estas lamúrias
não esta preguiça
não este “ora vamos todos morrer mesmo”

fico triste
de não dizer
grandes discursos de comoção
para o meu tempo

mas me satisfaço
na rasteira
que a qualidade me dá
e que eu dou nela

isso tudo pode ser medo
de durar
eu que não duro
nem mais nem menos que o impróprio

embriagar-me
já tampouco me embriago
pela enxaqueca e pela quimioprofilaxia
que ataca o fígado

sóbrio
por motivo de doença
esqueci como é que é
olhar pras coisas

deve estar escrito
nas estrelas que são
o livro da vida e deus
sim é que é escritor
que o meu papel neste mundo seja este

branco e rasurado
planando aberto no vácuo
em que viajam competentes
o sol e os planetas

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

tradição, família, propriedade

já que
eu nunca
servi
pra essas modas
de macho
bombacha e pernas
abertas sobre
um cavalo
chegar e exigir
massagem nos pés
costure minhas meias
mulher
nasce
meu lado bruto
ordenha as vacas
espanta as galinhas
espera em casa
raspando do tacho
um novo filho
quem dera
eu nunca servi
pra essas modas de fêmea
também

minha bisavó
parindo no meio do mato
sob as parreiras

meu bisavô
dizendo que pra filho
não se mostram dentes

tanta rudeza veio dar
nesta flor de delicadeza que eu sou
acredita-se

me vissem
a carne mole, o olho fraco
me expulsariam da casa
meus antepassados

talvez vagando
de noite além da fazenda
eu achasse a clareira onde moram
meus outros parentes renegados

com certeza estão lá,
vadios, vadias, bichas, sapatões
vivendo uma outra rudez
colhendo um outro delicado

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

olá

ganhei de presente dos meus amigos uma lagartinha verde, sobre um pedaço de folha de alface agora quase murcha, dentro de um copo de vidro transparente.

observo a lagartinha por muito tempo. ela quase não se mexe, parece. ela não se mexe. mas se mexe, sim. é que ela come o tempo inteiro. e só sai do lugar para poder comer mais, em outro canto da folha que pra ela é enorme.

acho que botou um monte de ovos pretos pequenininhos. ou talvez seja o seu cocô.

andrea disse pra eu chamá-la de gertrudes. gosto do nome. mas tenho birra de gertrude stein, um pouco, e não quero ficar me lembrando dela o tempo inteiro.

poderia agora fazer uma comparação entre o método da lagarta e o de gertrude stein, mas tenho birra disso também. fico olhando a lagartinha e ela é tão sem vanguarda, tão sem humanidade, mas tão parecida com a gente. resolvi que ela é minha amiga.

obviamente ela não é. a lagarta vive um mundo sem amizade? acho que sim. mas mesmo esse é um dizer impreciso. pra chegar mais perto do mundo da lagarta, eu tenho que ir cortando as palavras.

a lagarta vive um mundo sem?

a lagarta vive um mundo?

a lagarta vive?

a lagarta?

tenho medo que ela morra. será que ela come folha mesmo murcha? vou viajar por vários dias e terei de pedir a alguém que cuide dela por mim.

mas um dia a lagarta vai morrer. provavelmente antes de mim. porque esses bichinhos vivem menos tempo que a gente. (será por causa do tamanho?)

aí tenho que me perguntar outra vez: a lagarta morre? a lagarta tem tempo?

a lagarta?

vou perguntando, e perguntando as perguntas, e assim chego numa partícula de impossível resposta. como saber as células da lagarta? se a lagarta sabe as suas células? e, se ela não souber, as células existem? me dê uma mesa de bar e a eternidade, que eu fico perguntando sem parar.

no entanto, a lagarta é um fato. ela pode até ter suas interrogações, mas isso é impossível eu saber. entre eu e a lagarta, há uma distância de dois palmos preenchida com perguntas mudas e invisíveis e respostas falsas que não serão respondidas. e, no entanto, a lagarta é um fato.

o que tenho é o meu olhar, que distingue uma lagarta verde-viva no verde moribundo da alface. tenho o sentimento e a consciência de me saber maior e mais duradouro que a lagarta, e responsável por esta que está no vidro, e a ideia melancólica, herdada, de que ela é mais feliz do que eu. e tenho a língua portuguesa, que por uma cadeia ancestral trouxe à minha boca e às minhas mãos a palavra que eu digo e escrevo e com a qual enxergo o verde dentro do verde: lagarta.

não lhe darei nenhum nome.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

método

(...) não está de forma alguma dentro das nossas possibilidades fazer entrar a realidade no sonho, nem o dia na noite.

Não basta observar cavalos durante o dia para infalivelmente sonhar com eles à noite (...)

(Henri Michaux, falando aos poetas)

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

exercício

diz que o corpo

são faz a mente sã

e que a minha depressão

tem uma barriga descuidada

exercitando-a, certamente

ela se torna esbelta e faz inveja

a todas as outras balofas depressões

terá um programa de ginástica na tevê

e um namorado rico e sorridente

caminhei quinze horas

sem sair do lugar

a minha depressão ficava vendo

na televisão da academia

um programa sobre os programas

preferidos de lazer

da depressão:

cinema, comida, shopping center.

quando cheguei em casa

com os músculos demarcados de histeria

fiquei ainda mais triste e não levantei da cama

por uma semana.

agora negociamos

quais serão os próximos passos

se encontramos um pé de alface

e o comemos ou pulamos dele

ou se esperamos que a alface nos encontre

meio decompostos depois de uma semana

mortos de toxoplasmose.

"muito trágico" a depressão me diz.

ela não adere às minhas ideias.

devo novamente calçar os tênis, calçar a vida

e mergulhar no dia sem colete salva-vidas.

mas meu corpo não espera que a cabeça se concentre

ele decide, sozinho, pequenos tendões, tipo uma casa

com cupim nas estruturas, mas habitada.

quando é hora de chamar a descupinizadora

já não há mais tempo: tenho que tomar

banho, me vestir, e sair para o trabalho

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

procuro eu lírico no dicionário, não consta, e ele me dá as entradas que mais se assemelham

empírico
eufórico
bulímico
butírico
enclítico
neolítico
oolíitico

Mais porcaria

Bem menos imoral é o pernil que eu tempero pro almoço. Tento entender de onde veio esse pedaço, do porco. Pernil, fica na perna, coxa. Limão, alecrim, pimenta-do-reino. Quem dá vida a um porco? Uma porca. Aos nossos olhos, são todos iguais. Que nem japoneses, chineses, tudo a mesma coisa. Deixo o pedaço de corpo marinando e entro no site de homens que querem sexo. Digito: japa. Começo a conversar com um. Tem 33 anos, mora com os pais, mas tem carro. Quando chega, é tímido e apressado. Eu pergunto se posso espremer limão no pinto dele. Se assusta, mas não tem muitos senões. Salpico também um pouco de noz-moscada e sal. Tempero bem o moço. Mas esta não é uma história policial. Nos lambemos, chafurdamos, cheiros, festa do gozo do corpo, depois arfados de cansaço, lambuzo, nos vestimos. Pergunto, já que estamos, se ele não quer ficar pra almoçar. "Vou fazer porco", convido. Não, obrigado, sou vegetariano. O que sobrou, guardei na geladeira.

Porcaria

Agora eu não sei o que faço com ele.

Uma faixa vermelha pinga da testa. Pá, serrote, noticiário, já vi tudo. Ela encara o corpo gordo do marido morto. "Muito, muito mais gordo". Devia ter brigado ainda mais com ele: pra que emagrecesse, e então ela o carregaria que nem saco de pão para o resto da vida. "Comer?". A ideia lhe deu nojo. Se você mata alguém e isso não estava previsto, quero dizer, se você não planejou muito bem antes, vamos admitir que é uma estupidez, embora seja impulso, não deu pra controlar, embora o controle também seja estúpido, mais esta, a vida não tem receita para nada. Também não o assassinato. Uma faca escorrega, o bolo não cresce, a massa desanda. Então é pensar - pense, pense - refazer tudo daqui pra frente e tentar - tente! - não cair nas garras da polícia.

Foi aí que ela se lembrou dos porcos.

"Porco come até osso", foi o marido quem disse. Ele gostava de colecionar histórias de crime. Se soubesse como morreu, ficaria muito animado. Mas não saberia, mesmo que vivesse. Olha os porcos! Ela gasta uma caixa inteira de lenços umedecidos pra limpar embaixo das unhas, as solas dos sapatos, o suor dos suvacos, o sangue coagulado. E fica olhando a vara, a pocilga, o persigal, festim, os guinchos se refestelando. Não sei se ela sente remorso, tristeza, vingança. Se está feliz? Os porcos estão? Só acontece o que acontece. Tipo essa náusea que ela agora sente, e entra no carro antes que vomite, vai embora. O cheiro, imagine. Ela já nem teria como se limpar.

só verá as asas

"Se você realmente quiser ver as asas de uma borboleta, primeiro você tem que matá-la e logo colocá-la em uma vitrina. Uma vez morta, e só então, você pode contemplá-la tranquilamente. Mas, se você quer conservar a vida, que afinal é o mais interessante, só verá as asas fugazmente, em muito pouco tempo, um abrir e fechar de olhos."

(Didi-Huberman)

terça-feira, 18 de setembro de 2012

uma casa inteira

João e Maria na floresta

vão deixando blogues no caminho

blog-blog-blog

os seguirão os passarinhos

Quando chegam no coreto

todos cantam Roberto Carlos

os passarinhos aplaudem

vamos fazer do coreto uma choupana

Peguem, peguem

folhas de banana

adobe azulejo chicletes

agora blogo aqui

http://umacasainteira.blogspot.com.br/

também

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

perigo: libriano

na vanguarda do zodíaco
e dos novos ciclos que nos cercam
farei meu nome a máscara
de guy fawkes
numa tradição sem freud

corre-se o risco
de uma tal identificação com o não self
que não haverá mais self to die

num jogo urgente de bibliomancia
o i-ching me deu o hexagrama 18
dizendo que o trabalho sobre o deteriorado
trará grande satisfação, e que será bom
"atravessar a grande água"

jesus era jonas
e pedro não tinha fé
meu nome é um peixe
que me cuspa

era uma vez

era uma vez

a vez

que a tudo dizia

"agora sou eu!"

mas ninguém lhe dava bola.

Quando todo mundo se distraía

lavando as roupas e fazendo comida

ou quando todo mundo se deitava na grama do parque

pra tomar o sol gostoso da tarde

se fosse outubro

aí a vez aproveitava

e acontecia.

Como estavam todos ocupados distraindo-se

ninguém via o que acontecia, exatamente.

Mas a vez se dava por satisfeita.

Um dia o cachorro, que estava se lambendo, teve um pressentimento!

Ele foi até a pia da cozinha, pulou em cima dela e ficou esperando.

Quando nós chegamos, todo mundo riu. Menos o cachorro, que nem abanou o rabo.

Ficou em cima da pia, esperando que alguém o tirasse de lá.

Aquele foi um dia muito MUITO ensolarado, e a vez nem deu as caras.

Devia de estar aprontando uma das suas.

Esses dias eu recebi um cartão-postal.

Dizia assim:

Aqui está muito legal. Sinto saudades, mas não sei se volto. Se cuida! Beijos!

Ass.: a vez.

O cartão vinha lá de Maceió.

Como eu nunca fui pra Maceió, resolvi cozinhar o almoço. Era a hora.

Foi aí que eu conheci essa outra amiga: a hora.

De hora em hora, ela diz assim:

"Agora sou eu!"

Mas agora, por exemplo, eu preciso trabalhar.

Então não posso te dar atenção, desculpa.

venham mais cinco

sábado, 15 de setembro de 2012

bagagem

acho que lançar-se
sem seguros direi ao meu filho
não é uma escolha
prudente

levei
comigo apenas
aquilo que ainda não
tinha

livre
na queda
é só um momento

no gesto
ele responde
não é a viagem
que morre
com a gente

a mordida

deram-lhe uns dentes
ao mundo e solto
passou a morder tudo

a boca
antes aberta e banguela
à espera
agora buscava
coisas mais duras
maiores que ela

roía histórias
de amor desencontrado
dessas que empoeiram
na órbita da gente

roía as canetas
com que se escrevem cartas
ao futuro no meio
do século passado

os dentes
enquanto não gastos
e firmes transformam
o sólido
em massa com sabor
de saliva

e o mundo
predador tanto comeu
que tornava-se presa
às vezes
de uma disenteria

*

o que
você morde
te faz
mais forte

se você
morde uma pedra
seu dente
já era

nossa carne tão mole
parece dizer morda-me

nossos ossos tão duros
não cedem a qualquer fome

método

sem método

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

a fossa treme

desertaram

mil a cidade

pássaros

os ninhos onde

antes era

escritório

criminalidade

a terra

reusou

detritos e as pessoas
abduzidas pelos discos
ou o quê

nesta

espaçonave

esférica

dar

bom-dia

a

tudo

que

decide

nascer
a maya me deu um desenho
lindo uma recortagem
em que os mapas do brasil e da argentina
se sobrepunham
eu pus na mochila e trouxe pra casa

como na época eu não tinha casa
hoje fui procurar o desenho e não o acho
não sei nem pôr em palavras a tristeza
que isso me causa

é fácil dizer que é bem simbólico
de eu ter que sair da argentina às pressas
e voltar pra cidade de são paulo
tendo a maya me dado o presente no rio
quando eu estava com meu namorado à época
e não planejava viver tanto
quanto estou vivo agora, depois de meu namorado
carioca ter me dado um pé na bunda
por eu ter contraído o hiv e garoava
fazia aquele calor de sempre
eu tinha uma febre insuspeita e por isso nem tomei cerveja
era a primeira vez que eu via a maya
depois de dois ou três anos de correspondência
e gostei muito dela
mas a vida é assim mesmo
chuva é o nome que se dá
a tanto pingo caindo ao acaso
que molha todo o chão e vira uma enxurrada
se não houver escoamento
só que eu preferia pelo menos
não ter perdido o presente
diz que ortega y gasset diz que o que diferencia
o ser humano dos outros animais
é a capacidade de ser triste
já que a gente sabe nossa própria falha
e nossa incapacidade de ir além
minha cachorra deitava-se na porta
principalmente em dias de temperatura amena
e seu focinho secava, ficava morno
porque ninguém ia passear com ela
nós a amávamos tanto
mas não o bastante para sair com ela
da frente da televisão
ficávamos tristes e tontos vendo tv
e a cachorra triste e entediada sem nada pra fazer
isso já faz uns dez anos
mais tempo do que eu ouvi falar desse ortega y gasset

domingo, 9 de setembro de 2012

o bruno diz que dorme
e tem insônia e nela um sonho
em que eu passo por cima dele
fisicamente e isso amaldiçoa
que a pessoa nunca mais
cresça

é uma superstição de criança
um dia eu fiz sobre meu primo paulinho
me deduraram e os adultos deram de ombros
as crianças ofendidas
pois eu fizera crime horrível

meu primo cresceu e entrou pro exército
ou virou empacotador de mercado
perdemos contato

o bruno veio dirigindo desde belo horizonte
no meio do caminho comprou queijos e doces
de leite pela estrada, fuxicos, artesãs
e também mudas de rosas lindas
numa cidade chamada perdões

sábado, 8 de setembro de 2012


o desafio
agora
de escrever
é não escrever literatura
muito menos cartas que não merecem

pirei os mapas
com álcool e fósforo
em outras sociedades
talvez um mapa seja a folha
de uma árvore específica
passado de avós a netos
o conhecimento dos caminhos

quero viver o bastante
para tatuar todo o meu braço
ou pra perceber
que isso não será necessário

se tenho um lapso
entre a vontade e o piparote
o desafio agora
de escrever não será mais
a vontade o piparote
sempre foi
sempre será?
não sei o lapso

viver
um verbo vasto
meu medo
não morrer logo
meu medo
verbo perder
o tempo

colei com massa
inodora as fotos
na parede o mar
do chile quando
eu saí primeiro
deste país
e vi o pacífico
da praia feia
para provar
que o mar é água
em toda parte

meu medo então
fotos e histórias
uma estrada
quase me matam
caminhões

se tenho um lapso
o desafio agora
escrever sempre
é outra estrada