ganhei de presente dos meus amigos uma lagartinha verde, sobre um pedaço de folha de alface agora quase murcha, dentro de um copo de vidro transparente.
observo a lagartinha por muito tempo. ela quase não se mexe, parece. ela não se mexe. mas se mexe, sim. é que ela come o tempo inteiro. e só sai do lugar para poder comer mais, em outro canto da folha que pra ela é enorme.
acho que botou um monte de ovos pretos pequenininhos. ou talvez seja o seu cocô.
andrea disse pra eu chamá-la de gertrudes. gosto do nome. mas tenho birra de gertrude stein, um pouco, e não quero ficar me lembrando dela o tempo inteiro.
poderia agora fazer uma comparação entre o método da lagarta e o de gertrude stein, mas tenho birra disso também. fico olhando a lagartinha e ela é tão sem vanguarda, tão sem humanidade, mas tão parecida com a gente. resolvi que ela é minha amiga.
obviamente ela não é. a lagarta vive um mundo sem amizade? acho que sim. mas mesmo esse é um dizer impreciso. pra chegar mais perto do mundo da lagarta, eu tenho que ir cortando as palavras.
a lagarta vive um mundo sem?
a lagarta vive um mundo?
a lagarta vive?
a lagarta?
tenho medo que ela morra. será que ela come folha mesmo murcha? vou viajar por vários dias e terei de pedir a alguém que cuide dela por mim.
mas um dia a lagarta vai morrer. provavelmente antes de mim. porque esses bichinhos vivem menos tempo que a gente. (será por causa do tamanho?)
aí tenho que me perguntar outra vez: a lagarta morre? a lagarta tem tempo?
a lagarta?
vou perguntando, e perguntando as perguntas, e assim chego numa partícula de impossível resposta. como saber as células da lagarta? se a lagarta sabe as suas células? e, se ela não souber, as células existem? me dê uma mesa de bar e a eternidade, que eu fico perguntando sem parar.
no entanto, a lagarta é um fato. ela pode até ter suas interrogações, mas isso é impossível eu saber. entre eu e a lagarta, há uma distância de dois palmos preenchida com perguntas mudas e invisíveis e respostas falsas que não serão respondidas. e, no entanto, a lagarta é um fato.
o que tenho é o meu olhar, que distingue uma lagarta verde-viva no verde moribundo da alface. tenho o sentimento e a consciência de me saber maior e mais duradouro que a lagarta, e responsável por esta que está no vidro, e a ideia melancólica, herdada, de que ela é mais feliz do que eu. e tenho a língua portuguesa, que por uma cadeia ancestral trouxe à minha boca e às minhas mãos a palavra que eu digo e escrevo e com a qual enxergo o verde dentro do verde: lagarta.
não lhe darei nenhum nome.
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