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terça-feira, 25 de dezembro de 2012

duas histórias de família (a embolia pulmonar de tia zezé)

1

o médico desenganou
disse que ela ia morrer logo
estava na uti, então o filho dela
o reginaldo, comprou um monte de cachaça
tomou tudo sozinho e morreu
um mês depois, a tia zezé estava viva
e agora até casou de novo

(comentário da minha vó:
é besteira perder as esperanças)

2

a tia zezé toda entubada
no limite da morte, inconsciente,
a gente ia visitar e ela começava
do nada, a cacarejar

"cocococóóó"

não sabia se ria ou se chorava

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

tradições

Faço isso: inaugurar a cada tanto uma tradição. Há gente que me compre: queira uma festa de família. “Festa de família não trabalho.” Se insiste, aponto a plaquinha na porta: aqui a tabela de preços, veja nossos serviços, não quer não quer, há quem queira. O telefone toca: encomenda uma canção pra tocar anualmente em memória dos próximos mortos. Diz que é um novo feriado do governo, precisa dela o quanto antes. Sento-me ao piano. Escrevo uma canção fúnebre para mim mesmo. Troco os nomes pra não parecer louvor próprio. Sonho abrir outro negócio: o de pôr fim a tradições.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

canção

extraído a bisturi seco foi
você guardado em vidro sobre o peito
quanto mais eu olho mais eu vejo
espelho

montanha
de e-mails argumentando
o seu regresso, príncipe sonho
rima enfadonha em cada verso,
a solução para o fim de tanta maravilha
é trancarmo-nos a sete notas numa ilha
de gravação

*

todos os cantores
meus contemporâneos cantam
a mesma coisa

o avesso serve
a vida é uma beleza
se você quiser
pôr delicadeza

vou ficar
mais um pouquinho
meu amor
mais um carinho

cada um é cada um
e cada um tem o que tem
o mundo acaba logo logo
melhor viver, meu bem

*

durante o festival
da nova música paulistana
que cheiro de vômito
é que os bueiros e as bocas
de lobo começaram a escorrer
vômito

examinaram na prefeitura
e constataram que era vômito

é engraçado
se você pensa
no dia seguinte
a gente teve
que continuar vivendo
nesta cidade
porque os empregos
nos esperavam
e pra muita gente
o subemprego
e você andava nas ruas
é até engraçado
e escorregava
e sentia o cheiro
de vômito

*

palavra dita
é palavra solta

palavra dita
é pessoa presa

se vendida
a pessoa é solta

*

li num muro
- se você não é ouvido
escreva


"People always clap for the wrong things. If I were a piano player, I'd play it in the goddam closet."

(The Catcher in the Rye)

domingo, 16 de dezembro de 2012

diário

o artista do zimbábue
owen maseko
foi preso por pintar
massacres do ditador robert mugabe

seu nome estampado
nos jornais da europa
serve de argumento
pela democracia burguesa
que segundo os jornais
não impede ninguém de pintar

*

no canadá, as pessoas
veem jogos sangrentos de hockey
comendo hot dog, com crianças
tranquilas; acham o futebol um jogo
de mulherzinhas porque os jogadores
não se espancam; em compensação
as torcidas

*

a poesia não é
uma arte do irracional
a poesia não é nada
além de palavras
e alguém olhando as coisas
do sonho do mundo
e alguém lendo palavras

*

onde foi que eu perdi o encontro?

*

uma hora marcada
à revelia da agenda
ninguém foi avisado
é assim que nos vemos
aí o encontro vai embora
e ficamos olhando um pra cara do outro
esperando um novo encontro

*

hoje não tem fernando pessoa
coitado do fernando pessoa
morrendo de cirrose, sozinho no quarto
coitado do van gogh
que cortou a própria orelha
e deu um tiro no peito
e três dias moribundo
dizendo pra theo ao seu lado
"a tristeza nunca vai acabar?"
coitada da ana cristina
que se atirou da janela
ensaboada pra que não segurassem
era a quinta tentativa?
coitada da sylvia plath

coitado do drummond
que morreu de velho
depois da filha, que morreu de câncer
e nunca matou ninguém
e foi sempre comportado o bastante
pra morrer de velho
coitado

*

se eu tivesse um canudinho
eu chupava você

sábado, 15 de dezembro de 2012

uma qualidade

"(...) mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos."

(Machado de Assis, advertência de Várias histórias)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

você sabe

fazendo tudo
o que te mandam
tem gente que vive
uma vida completa
absoluta
surpreendentemente
normal
no aniversário
de 50 anos do início do vírus
as manchetes os programas televisivos
meu sucesso um sorriso
e amigos parentes
o médico explica
a profilaxia necessária
apesar dessa vida
perfeita
intacta
inevitavelmente
vazia de acidentes

*

o homem que venceu
quatro cânceres
mais de quinze cirurgias
é um highlander
e a vontade de viver
no programa da tv

no que diz respeito a isso
e a demais assuntos práticos
sinto informar que não me sortearam
a garota do fantástico

*

o efeito
alguém avise
colateral do tratamento
além de:
osteoporose
diarreias
dores musculares
tumores etc.
mudar de ano
atrás dos sonhos
persiga os sonhos
o cuidado
o encosto
do corpo
as escolhas
o tédio
afinal
enfim
uma vida ampla
tola
p r e v i s i v e l m e n t e

normal

a vida inteira pela frente

tem gente
que vive
dez, vinte anos
muito bem
não fique triste
se cuidando
tomando os remédios
tem gente que vive
trinta
o triglicérides
vontade, trabalho
tem gente
que vive
tanto
você sabe
hoje em dia
se cuidando
pratique esportes
uma alimentação saudável
balanceada
saudável
tem gente
que vive
cantando
correndo
tem filhos
sorria
o riso é o melhor remédio
proteja-se
hoje em dia
você sabe
se cuidando
tem gente que vive
tanto
gente
que vive
todos
todos
os anos

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

"a vida se origina do desejo"

então
os bandos de papagaios
de cara roxa
voam de uma ilha à outra
alternam sono e fome
entre as ilhas
e o nosso
gosto por roxo
nos move até lá
como antes moveu outros homens
a abatê-los colocá-los em gaiolas
ensiná-los a dizer palavras
colocá-los em panelas, abatê-los
o desejo não tem asas
currupaco

sem
vontade de ver
comer ou ir
as ilhas afundam
no tédio da panela
penas verdes
nos brincos que o hippie vende
o rosto roxo
desse sol
esse além
esse aqui
botam a gente
sem origem como o
currupaco

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

cuecas

mesmo que niguém as veja
compra as cuecas mais bonitas
é bom tê-las delicadas, decorando
o corpo por dentro, te asseguram: é homem
pra ninguém botar defeito

às vezes você despe
as calças do trabalho
alguém te agarra carícia
debaixo do algodão
você endurece (ou não), baixa o elástico
e fica nu, sem nada que segure

o design se esmera em fazer panos
parecerem masculinos, funciona
modelos nas fotos quase não têm corpo
é assim que você deve ser
mas as cuecas amarelam, sujam
os pentelhos soltos tentando fugir
presos por hábito

cuide-se
querido
te entregam
nas mãos as namoradas
e as mães te deixam
pra vestir sozinho
esperando atrás da porta
perguntam: ficou bom?

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

o poder da poesia

eu escrevi um poema que rimava bicho e lixo e era sobre a professora. então eu mostrei pro menino mais popular da classe na esperança de ser como ele, já que ninguém da classe gostava da professora. o menino percebeu minha travessura e fez uma maior: entregou o poema à professora, que leu, olhou pra mim desde longe na mesa dela, perguntou com "foi você que escreveu isso?", eu fiz que sim com a cabeça, com vergonha, e deu o sinal do intervalo.

no intervalo eu orei muito, pedindo a deus que não me fizesse ir pra diretoria.

no dia seguinte a professora já não estava mais lá, e parece que não contou do poema pra ninguém. talvez por vergonha, era um poema muito violento. o menino também não contou do poema pra ninguém, talvez tenha até se esquecido dele. eu também não contei. veio uma nova professora, e as crianças que detestavam a anterior começaram a dizer que não gostavam da atual, que preferiam a anterior.

domingo, 9 de dezembro de 2012

como fazer bonito um hospital

não pense
nele
nem cheire
a doença limpa
pela memória

os doentes dizem
socorro e se olha
o que você quer

atrás
dos vidros nossos pais
irmãos, filhos, amigos
vão dizer
adeus
e você não ouve

o hospital rouba a voz
se não há como deixá-lo
bonito pra vista, cante
(enquanto pode)
que passa

sobre fotografia

a pele descoberta agora
encontra a sépia névoa
dos que não querem ver
que o corpo respira por fora
e é só contraste o que se mostra

deixem pra mim o pus
o sebo que brilha demais
e quem não tiver lugar

bem-vindxs
eu digo
e escrevo

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

as mordidas descem pelas paredes

e encontram o teu sono atento

à espera da deglutição

"como um sono pode ser atento?"

pois é, não durmo

nem as mordidas podem ser sem dentes

menos ainda descer pelas paredes

e você não pode ser deglutido

"pois é, não posso"

a espera cai de si as palavras

e o céu se mostra inexistente

sou só reflexo e gases presos

nessa barriga boba que é a terra

planeta, acaso as tuas posses

podem ser ditas sem que nos toquem

ou sofrer dá-se por dizer

sem que haja a coisa dita?

no entanto descem, as mordidas, das paredes

e vêm buscar meu sono atento, pra que

dentes o estraçalhem, façam-no

migalhas secas e insones, perdidas

mas ele queria ser deglutido

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

o porto

com a júlia

falando da vida

que é um monte de coisas

depois da ponte

de metal moderno e as gaivotas

cagando bombas

de piada à beira do douro

falando do amor

que é um monte de coisas

inclusive uma ponte

de metal moderno

e gaivotas

que cagam voando

e a gente acha graça

depois vai embora

porque não quer se sujar

entre as vielas

medievais

a igreja some da vista

as torneiras têm água tóxica

na cabeça uma agenda de encontros

um avião prometido entre as nuvens

metal moderno, gaivota

a júlia comigo

falando do rio

que é um monte de coisas

dentadura fixa

a dentadura era uma ideia

que às vezes caía da nossa boca

então compramos um gel fixador

e ela nunca mais despegou

a higiene das ideias é algo difícil de fazer

formam cáries as tuas ideias, e não mastigam muito bem

os dentes crescem para sempre

o que os impede é o atrito dos de baixo com os de cima

tiro a minha dentadura

ponho-a do lado, um conjunto em cada copo

separados pela cama, os dentes crescem e quebram os copos

minha dentadura de madeira como a de washington

cria raízes e quebra as calçadas de são paulo

o asfalto não detém a mordida

fico banguela enquanto os dentes

crescem e tomam em floresta a cidade

depois o país, quase o continente

antes que os eua os bombardeiem

e o atlântico de um lado, do outro, o pacífico

cessem a terra em que cresciam

*

ando só e desdentado entre as ruínas do ano passado

pra nutrição chupo o que aparece, e nisso viro autoridade

as crianças da aldeia me cercam para aprender a chupar

tirando os nutrientes necessários, evitando o veneno

*

de uma árvore nascem dentaduras

quando estico um braço pra alcançar uma

os dentes tilintam do topo da árvore

e dizem, suas vozes de frutas

"morde morde morde"

acordo tão assustado que minhas gengivas sangram

do bruxismo que não cede à ausência dos dentes

dormi sob a árvore do cão

se olho para cima, os dentes latem

*

antes as ideias adubavam o solo

agora amadurecem nas copas e preparam

a queda que estilhaça o doce em sementes

animais silvestres as comem e levam em fezes

plantações dos mesmos dentes a outras paisagens

as ideias crescem até onde a vista alcança

se um viajante incauto deita-se sob elas pra descanso

acorda mastigado e digerido

depois, as ideias cantam

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

a saúde do homem

não temos apenas
maiores salários, projeção social
e o sucesso longevo do sistema patriarcal

para lograr tanto êxito
além de mulheres
temos que nos matar nós mesmos

são os homens que morrem
mais assassinados, e matam, e morrem
mais por suicídio

nas brigas de gangue
e nos filmes de bangue-bangue

em disputas por território
seja um país ou um mictório

dá-lhe bala na cabeça
dá-lhe facada na costela

não temos
apenas maiores salários

http://www.bvsde.paho.org/bvsacd/cd26/a03cv10n1.pdf

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

dentadura perfeita

Tem um dente que
late sozinho quando ninguém
mais vê

faz isso porque um dia disseram "Dente
que late não morde"

amanhã o dente decide contrariar

agora ele está ocupado mastigando

*

meu pai dizia
minha sogra tem
dois dentes:
um pra abrir garrafa de cerveja
o outro pra doer
os amigos riam
a família achava muito engraçado
mas minha vó tinha quatro dentes
na frente e talvez mais um
atrás, sendo que nenhum deles abria
garrafa de cerveja e
quando um deles doeu
minha vó arrancou na unha

*

minha vó dizia
não posso rir porque é feio
velha sem dentes, mas não aguentava
exceto nas fotos
soltava a gargalhada

*

nas fotos sorria de um jeito
talvez ensaiado no espelho
ninguém jamais conseguiria
dizer que ela tinha janela

uma vez eu lhe disse
faça uma pose bonita
e ela, pra pose solene,
fingiu encher uma bexiga

*

meu pai e minha vó morreram
nessa ordem

o aparelho ortodôntico da minha infância
ainda dá certo
assim como o flúor na minha gengiva
que mamãe diz que passava
quando eu ainda não mordia

agora o desafio da idade
é não mastigar os próprios dentes
nem esquecê-los
como se a boca fosse um beco
dentro dos sacos de lixo rasgados
e os ratos tirando sarro

o céu se está preso

pra deixar o dia entrar
abro janelas pelo corpo
os órgãos debruçam-se nelas
porque esperam que passe
o afiador de facas e os leve
em namoro sequestro
à procura da floresta

copas altas que nos cobrem
ameaçava a professora da igreja
não deixam a luz chegar ao chão
da amazônia, caverna aberta
a superfície digere a gente

sem lâmina de estilete meu corpo
fica fechado igual a casa
daquela tia que esconde o medo
na própria saia,
esses cômodos não ventilam

o futuro é frondoso
guardando o céu no escuro
se junta distante a outros futuros

na base do caule
a gente gesta o adubo

terça-feira, 27 de novembro de 2012

que fique sempre frio

na falta
de um dia no polo
venho
por meio desta pedir que fique
sempre frio, o cinza
combina com os olhos
realça a cor das paredes
os ombros se encapotam pra proteger-se
e só
saem à rua em caso de máxima necessidade

sábado, 24 de novembro de 2012

o desejo abre
um voo submerso
em terra e queixa
volta a superfície
anelado, indistinto
o que é o cu, o que a cabeça
antes pequeno e pluma
inquieto nas mãos
agora cava até a raiz
de nenhuma planta
viesse
exposto o osso do mar
aos nós da nossa garganta
sem sono, desânimo, um fim
de semana em são paulo não
salvo pelo brilho guardado atrás das paredes
no dia

a noite
agora come as lâmpadas
fezes luz pra prolongar
estada na vigília
ingrata

a vida
aquática abriria o ar
passagem pra o futuro prometido
quem sabe qual deserto vagaria
se nós fôssemos

. o fêmur duro do mundo
cravado na cabeça do futuro
supostamente o fim de novembro
devia trazer uma espécie de descanso
classificada pelos estudantes do tempo
como o fecho de fim de ano

temo
um réveillon afogado
desconfiando do conhecimento
que distribuiu os calendários

impressos em cartõezinhos
que a gente pegava na padaria
ou sob o coração de cristo
coroado de espinhos na parede da minha avó
precedido das rosas expostas
no coração de maria

se alguém souber
de um calendário mais exato
ou quiser me dar um relógio
desses que funcionam no natal
aceito, desconfiado
esperando que os ponteiros
apontem uma direção

parece tão fácil para os morangos
e outras plantas sazonais
a hora de recolher-se em secura
e a outra, de dar doce aos animais

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

que dia longo

disse a noite

que escondida esperava

olho os próprios ossos

imagino-os sob a pele

a caverna do corpo

onde a noite dorme

o solo

mal suporta, treme

quando passa

toneladas dinossauro

tem um tumor na cauda

este, por acaso, não deixa fóssil

a noite fecha

o notebook

em que via documentários dinossauros

não entra em cena

"que dia longo", ela repete

daqui a umas horas

(esqueça os ossos)

céu escuro

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Teus olhos
esgotam

O ouvido persegue

Querido. *****. Espero. Que. Você. A mensagem segue. Cravei no escuro essa espera, palavras metálicas dizendo, pra todos os meus segredos, é hora do remédio.

À merda.

Ele agacha à cata, das pílulas, sei que eu devia, ser mais paciente. A vida a vida avida ainda está aqui. Nesta sala, nestes olhos. Você não colabora. Pensei que ia ter uma vida inteira pra não colaborar. Desculpe a pressa. Ele chora no banheiro. Pensa que eu não vejo. A cabeça. A minha escuta até o mínimo: passo, suspiro, é a morte, "ela deixa a gente atento, verdade, tudo o que dizem os livros!". Vi-me. Afastada. Do centro. Outra.

"Sempre uma coisa defronte da outra.
Sempre uma coisa tão inútil como a outra."

Eu deveria dar graças por ter o sustento. Ouço e um naco de sangue amortece a garganta. Por tudo dai graças. É minha mãe, não me atrevo a cuspir. Amargo de novo a casa vazia. e a espera.

Tudo não passa de uma grande armação. Nosso herói está saudável neste momento cruzando uma grande avenida, entra na loja e compra cuecas, sai de sacolas, passo leve na rua. Olha o mendigo! Nossa, são tantos. Quando chegar em casa, vestirei as cuecas uma a uma, olho no espelho, a melhor te reservo: você tira nos dentes, gozamos. Um índio amazônico sonhará com esse estranho mundo em que nos cobrimos de panos pra logo tirá-los. Em 1973 será visitado por homens de pano, com gripes e rifles. "Bom dia". Nos levantamos sem doença. Afinal, a vida é mansa: atrito e dureza envolto no sumo, macieza, a penugem cobre a gente. Depois o acaso te toma no colo e.


cheguei às cidades à hora
das bodas quando
ali a alegria imperava
entre os homens

eu dancei com eles

dormi entre os mudos
sem língua a boca cheia
entupida de pontes

a força dos meus braços
foi-se em malas
carreguei o medo

(Max Czollec)

terça-feira, 20 de novembro de 2012

podia
ser mais fácil
é tão simples
o pênis
procura a carícia
nem força
ninguém a querê-lo
e um dia
contra todas as expectativas
encontra

logo
o pênis
não importa
o corpo todo
abraça o tempo
as mãos procuram
e tudo encontra
é simples
até mais do que parece

mas
então temos
que criar
e buscar argumentos
isso de ser gay
i am what i am
são tudo argumentos
perceba
que argumento
rima com jumento
o que é um insulto
ao animal

antes
que eu me desse
conta
fiquei adulto
a retórica
ganha experiência
e cansaço
por exemplo
que a infecção crescente
do hiv entre jovens gays
é, entre outras coisas, resultado
da marginalização desse segmento
em outras palavras
quando penso no meu diagnóstico
lembro das vezes em que argumentos
justificam um fim lógico
pra mim

ou
(hoje aconteceu)
já posso
dizer que conheço
pessoas que apanham na rua
de grupos de extermínio
senhoras cristãs
e
pior
que um colega foi morto
anteontem no recife
e que tudo leva a crer
- sinais de tortura
cadáver despido
cédula de identidade rasgada ao meio -
ter sido assassinato
motivado por homofobia

sendo o trigésimo este ano
só no estado pernambucano

ao todo em 2011
no brasil 266
assassinatos por homofobia
estimando 1 morte
a cada 33
horas, em 2011, em 2012
ainda não tem estatísticas

preferia
ficar quieto
na cama
enquanto as amídalas
dele não curam
cortando o gengibre
tomando antibiótico
são os únicos argumentos
que às amídalas importam
se você fala pra elas
de estatísticas, de bíblias, homicídios
as amídalas nem ligam

que
o meu colega assassinado
tivesse a idade que eu ainda tenho
me faz dormir com pesadelos
sem argumento
acordar talvez
com pressão na bexiga
ereção matinal
(ela como as amídalas
não liga pra bíblia,
tem uma vaga memória afetiva,
não lê jornal
e só desaparece
com um bom argumento
pode ser tiro, vírus, desprezo
ou qualquer dessas besteiras
que trazem o teu corpo à noite
à morte, na areia)

domingo, 11 de novembro de 2012

"Levado por minha ávida ambição e desejoso de ver a grande profusão de estranhas formas criadas pelo engenho da natureza, vaguei por algum tempo entre os penhascos umbrosos até me deparar com a entrada de uma grande caverna. Permaneci diante dela por algum tempo, aturdido, perplexo com a existência de algo assim, as costas encurvadas, a mão esquerda descansando em meu joelho, a direita fazendo sombra para os olhos, a todo momento me inclinando para lá e para cá, para tentar discernir alguma coisa em seu interior; mas isso me foi negado pela imensa escuridão que nela habitava; depois de algum tempo, dois sentimentos subitamente brotaram em mim: medo e desejo - medo daquela caverna escura e ameaçadora, e desejo de ver se haveria lá dentro alguma espécie de milagre."

(Leonardo da Vinci)

sábado, 10 de novembro de 2012

uma
caverna
que acolha
as noites

fora
o dia
não
cansa

destrói
a caverna
a prefeitura
ergue prédios

nós
nos amontoamos

cada amigo
é um edifício
que sofre com a falta
de asseio ferrugem tubulação

o mundo
sem gente quebra
as paredes, infiltra
luz e raiz

o prédio
da prefeitura e os do
condomínio, o prédio do hospital
tudo desaba

selvagens
os ursos retornam
e dormem
na caverna do escombro
dos amigos
os dentes resolveram abandonar a boca

porque a boca não podia abandonar os dentes

e algum abandono era fundamental à história

embora língua campainha gengivas tenham ficado

todas formando, com glândulas e lábios,

aquilo que ainda pode ser chamado de boca

ninguém beijava ou escarrava nela mais

nem a Ingratidão, essa pantera,

fora solta do zoológico

e correu pro interior

antes que seus caninos também a abandonassem

outra vez a boca:

queria ir a Roma, mas não foi possível

a Europa, sabe, está numa puta crise

não tão ruim quanto a África

mas definitivamente pior do que uma boca sem dentes

que ainda pode, na alegria brasileira,

cozinhar os legumes da feira, tomar uma sopinha

e sorrir no quarto escuro

*

Meus queridos dentes,

deixo este bilhete

caso vocês voltem

e eu não esteja

me esperem

por favor não fujam

outra vez

estou no rádio

arranjei trabalho

canto cabaré

quero roer osso

não aguento mais chupar

o dedo do pé

na geladeira tem queijo

fiquem à vontade

fiquem

faremos mordidas e beijos

*

Pai!

(o velho não responde)

Pai, acorda!

(acorda assustado)

Quê?! Oi?! Hein?!

(ufa)

Você tava gritando. Teve um pesadelo?

(ufa)

Tive...

(acordando)

Sonhei que eu não tinha mais dentes.

(não sorri)

Mas você não tem mesmo.

(a pantera volta do interior

toca a campainha)

Espera um pouco.

(vai lá ver)

Ah!

(se eu tivesse dentes)

Ah!

(a pantera entra

e chupa os dois)

*

fixação oral:

também posso dizer

às futuras gerações

do meu medo de perder

olhos, quereres, testículos

cabeça, ombro, joelho, pé

pai, patrão

eu

*

querida boca,

não te queremos mais

infelizmente estamos presos

que nem as árvores

o planeta gira gira roda

e elas lá, nas suas raízes

dá uma vertigem

estar preso

em algo que gira

oi

não gostamos mais

de ficar no escuro

molhados

com essa língua babona

de síndica

mas que se há de fazer?

*

Pai!

Pai!!!

Quê?! Oi?! Hein?!

Você tava gritando. Teve um pesadelo?

Dim-dom

Perae, tocaram a campainha, vou atender.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

vem em sonho para aqueles
que estão muito acordados
a boca range durante a noite
não por isso os dentistas chamam
de bruxismo, elas saíam de seus corpos
transformadas em gato
iam reunir-se nos sabás
onde beijavam o cu do demônio
"por isso", tocha em punho o inquisidor
argumentava "esse bafo ruim"

durante o dia, estou tão sonâmbulo
quanto possível, mas não por isso
vejo fantasmas. eles se escondem
atrás de espelhos e outros objetos
afiados. quando tenho uma noite ruim
de sono sei que eles andaram me encontrando
sem querer.

meu sorriso dentes tão perfeitos
já foi fotografado por muitos admiradores
aproveitem porque logo os dentes
se desfazem em saliva e assombração
visitas noturnas ao tinhoso, êxtase
de deus tornado homem, mão de algoz
na rua augusta, fim do sonho de adão

sábado, 3 de novembro de 2012

o comprimido ainda samba

a cada dia um avanço
da medicina mais um pouco
agora que eu quero viver
penso "tomara que descubram
cura do câncer da sarna do hiv
varíola verruga febre malsã
gripe tosse dor muscular
tudo amanhã"

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

samba de um comprimido só

eis aqui este sambinha
feito de um comprimido só
varíola gases gonorreia vão entrar
mas por ora o comprimido é um só
câncer tosse é consequência do que acabo de prever
bulimia reumatismo lúpus lepra avc

quanta letra existe
por aí
fala tanto e não morre nada
ou quase nada

minha mãe entrava no quarto
e trocava os lençóis
meu pai preocupado
xingava todos nós

minha mãe dava injeção
e mandava suturar
meu pai ia socorrer
e era o primeiro a desmaiar

o dr. yip quem mandou
tomar quinze comprimidos
receita fitoterapia
nada a ver com suicídio

espeta agulhas em lugares
precisos e que doem
diz que as quinze bolinhas
é com sal que a gente engole
meu pai sempre dizia
"você acha ele legal?
quero ver você aguentar
comer com ele um quilo de sal"

tanta ideia fixa por aí
que teme tanto e não enfrenta
só inventa

e voltei pra minha nota como eu volto a escrever
desisti, realizado, cansado de escrever
quem quiser que conte outra, ou que arranje outro pra ler

uma bula, um perigo, uma viagem, um bebê

diário da medicina chinesa

o dr.
yip
viu
a minha língua

que vermelhão!
são problemas do coração

e do fígado e da vesícula
que também têm sentimentos

depois
o dr.
yip
pôs
agulhas no meu travesseiro
deu bolinhas coloridas pra tomar

dia 1, começo o tratamento

até agora nenhuma diferença

educado cristão não topo magia negra

coletiva de imprensa
doutor
yip
hiv
tem
cura?

hiv são tlês letlas
cula quatlo
plóxima pergunta

a plateia
tem medo de agulhas
e de piadas étnicas

o dr.
yip
ri

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

para um amigo

a gente se perde, um dia
sobre a beliche, um dia cai

o monstro sob a cama
vai acumulando tropeços, descasos,
vai, enfim, virando
o monstro que ninguém é
nem ele

nem eu
nem você

acomodados no colo do monstro
acabamos gostando dele, que nos nina
por isso nós sempre gostamos de ser monstros
e vivemos uma linda amizade desde então

ora, os astros e as cidades
nos separem quanto possam
após levar a lambada da vida
em vírus e lutos e futuros
pretérito, não sou eu
que vou dizer NÃO aos quilômetros
NÃO ao cansaço, um "sim" quase mudo
a você

aceito, resignado, que o meu tamanho no mundo
é 1m84
com margem de erro de um centímetro
para mais ou para menos
mas não margem de erro do rio da Prata

a nós ninguém deu essa margem tão
larga

meu braços não alcançam meu coração
que está contigo. antes eu diria
tudo isto. agora escrevo,
é o bastante. nada convence
que a nossa amizade seja margem
errada. a água brota, evapora, transforma
em fundo buracos onde habitam bichos
bichas insuspeitas. é muito bom, até na água,
estar contigo


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

a escrita é materialmente determinada

faziam
na china
o da zi bao
significa
"grande palavra"
sendo "palavra"
me lembre
"condenação"
o lugar onde escreviam
os crimes que cometera
o prisioneiro de pescoço e mãos
entre as tábuas, praça pública,
e toda a gente vinha ler
o que de ruim tinha acabado

depois
a revolução socialista
usou essa técnica
sem preso
pra socializar a informação
de modo que o da zi bao virou
um grande jornal
em muro todos liam
escreviam
as notícias, as doutrinas, propagandas

nunca
talvez ninguém vá ler
muito as coisas que eu escrevo
sendo eu não a china socialista
mas imaginados chineses
almanaque curioso
das coisas vastas do mundo
em linguagem cifrada, sozinha
arrevolucionária

depois
quem sabe as ordens que virão
papel houver e impresso as graças
do gosto do povo
se em consumo, guerra, tristeza ou prisão
me angustia o presente metade
cartola fajuta aluguel projeção
políticas públicas de incentivo à leitura
terceiro setor, drummond, brecht, camões
este hoje oposto a si
tanto quanto a china que eu não sei

quero
achar entre as algas dos olhos
se enroscam nos dedos motivo
continuar existindo e fazendo
coração membros medula fígado
mantê-los pelo máximo possível de tempo
como quase toda gente consegue
e as palavras esteio, escuro ou paisagem
a vez de viver sem fracasso no meio
e possível, quem sabe, saber bem
chinês

estímulo ao voo

a menina

num empenho de vontade, das boas, dizia "voa"

Voa!

alegre, olhando o passarinho

súbito solto da gaiola, por mãos que afagam

sem tocar, afeto o olho, a palavra com carinho, "voa,

bebezinho!"

a mãe se visse, você pensa, insatisfeita

de perder seu periquito, tanto salário aquele alpiste

acordar e ver o verde, o amarelo, ouvir o canto e a criança

agora, atuando contra ela: dando ao que é do mundo

o mundo que antes era só de César.

você não sabe a história inteira.

se esconde no seu casco, medo, tempestade:

o jabuti da família empurrado com o pé

"Voa, querido!", jogado para cima

Quantas vezes

(meu deus!)

o amor pelo jabuti

vai ser instância de pássaro

estímulo ao voo

do outro, passamos

remédio nos meios quebrados ferida do casco

mostrar as diferenças entre répteis

e pássaros, sucesso de cura

parece (a menina

celebra) o jabuti

pôs um ovo

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

"O Brasil foi o criador da Operação Condor"




quando os mortos
dos outros contarem
entre os mortos nossos
os cemitérios falarão
"derrubem as paredes"
as valas sob escolas
famílias indústrias
quartéis e shopping center
tragados documentos
pela terra e devolvidos
indigentes os cadáveres
insurretos dirão (agora
é certo) "tudo é vosso
cemitério"


história natural

soube tudo
que podia saber sobre
os dinossauros
me cansei
aquém do engenho humano

interesse
desfazendo-se
feito o íntimo das ostras
quando morrem

abrem-se
seus músculos já não se importam
proteger-se, por mole o dentro
dissolvido em moléculas
do tempo

fóssil
do latim fossilis é
desterrado, extraído
da terra;
em chinês lê-se
化石
tornado
pedra

eu
nada
se fosse
palavra
latim derivar
submerso
no ar
ou em chinês
talvez
o ideograma de vento
com outro de carne

esse mole
umedecido dos dias, um dia
também vai se abrir, acabado
não mais tenso
o cansaço

tenho curiosidade
de saber quais as cascas
encontradas, será meu corpo de fato
um mistério, será
minha mente enfim
um minério

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Em meio à
Grande flora
De antes
Anda arrastando-se
Uma Preguiça
Gigante

Respeitável público
Moças da primeira fila
Este é o último exemplar
Do nada temível
Megatério
Outrora abundante
Em nosso hemisfério

a plateia
preguiçosa
não ri
com fominha
se pudesse
comia carne
de javali

As Preguiças também
Eram comidas
Por isso é que foram
Extintas

um grande estômago
corrói o futuro
das espécies

caímos da cama
no ácido gástrico
de bichos menores
que nós
a barata-d'água
no japão
chega a meio metro
de tamanho e ataca
filhotes de cobra e de tartaruga
vivos

Caçados esses
Dóceis animais
De Poderosas Unhas
Sumiram
Há 10.000 anos
Embora
Evidências
De um pequeno
Grupo remanescente
Em Cuba
Até 1500

o planeta está digerindo a gente


quarta-feira, 10 de outubro de 2012

era uma vez

uma parede

e atrás dela

o pai

e dentro dele

pulmões

e naquilo

ar

sentido inverso:

era uma vez

o ar

preso entre

dois pulmões

ambos dentro

do meu pai

e dentro dele

uma parede

(moto-perpétuo)

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

o fim da história da lagarta

foi no dia seguinte, mesmo, que a lagarta já tinha comido quase toda a folha de alface, que estava murcha irremediável, e quis sair do copo de vidro andando pelas bordas.

uma folha de couve, fresca por enquanto, não adiantou o apego. outra folha de alface, arrancada clandestinamente do pé, tampouco.

depois de muito considerar, quais hipóteses, minhas responsabilidades de carinho e de cuidado, o melhor era mesmo largá-la à sorte na natureza, bichos selvagens só foram domesticados depois de séculos.

no carro a gente fala da ração canina industrializada, feita para que o cocô fique pegável. mas os próprios caninos foram industrializados, embora um tempo que não havia indústria. se sumíssemos todos humanos, os cachorros soltos sem pedigree champ se comeriam poodles chihuahuas só os grandes viveriam, e mesclados, tornariam outra vez ao estágio lobo evolutivo, em matilhas caçando o que se atrevesse a humano, seus antigos donos.

também digo, convicto, que temos que matar tudo, todos os bichos. que eles não teriam dó da gente. uma barata gigante na ásia come filhotes de cobra e de tartaruga. caça-os, prende entre as garras, mata-os vivos e come. aranhas e escorpiões, desse tamanhico já nos caçam e querem tão mal. eu os mato com a tristeza e a honra dos sobreviventes, culpa cristã.

a lagarta, então, por afeto, joguei ela no lixo. se jogasse na horta, minha amiga brigava comigo. o luiz disse "a natureza em são paulo". implacável, medonha, miséria, não lembro qual adjetivo ele usou.

instantâneo

fotos de homens
bonitos cabelo
ao vento peito
aberto anos
setenta

abre
parêntese data
de nascimento
data de morte

ou hífen
sem nada
ou fecha
parêntese foto
do homem
hoje velho
se vivo

anúncio
"matou-se"
suicídio
em agosto de
2012
sem razão
aparente

fotos
de homens
bonitos
jovens hoje
2012

um menino
morto
de câncer
jovem, bonito
em 2003
ou 2004
2005...

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

outubro

o dia
abria-se em araras
calangos
capivaras

uso o imperfeito só pra entrar no assunto.
aqui no mato grosso do sul
no meio de tiroteio entre traficantes e polícia
aprendo com os gansos a ficar no lago molhando as penas
afunda o pescoço na água e depois volta, chacoalhando
pra cima

amanhã o dia
se abrirá em será que bichos?
encontro no fundo da mochila
(buscava uma cueca)
o diário de viagem
perdido

rabisco umas palavras
mal me animo

o banho de rio faz a gente entender
tudo sem saber de nada

mas é preciso sair do rio
voltar pra são paulo
/ voltar / de ônibus / avião /
fim das estradas

então escrevo pra uma amiga
há muito não vista
e dizem que anda fazendo cadernos

digo assim pra ela "oi"
e as saudades não deixam a gente se encontrar
mas uma boa desculpa é a encomenda

preciso de um novo diário

domingo, 30 de setembro de 2012

menor


cálculos
matemáticos
também não são
o meu forte

na escola
errava até de calculadora

as palavras
descubro
merecem,
pra quem as merece,
um exato cálculo
e o poema é uma equação

não estas lamúrias
não esta preguiça
não este “ora vamos todos morrer mesmo”

fico triste
de não dizer
grandes discursos de comoção
para o meu tempo

mas me satisfaço
na rasteira
que a qualidade me dá
e que eu dou nela

isso tudo pode ser medo
de durar
eu que não duro
nem mais nem menos que o impróprio

embriagar-me
já tampouco me embriago
pela enxaqueca e pela quimioprofilaxia
que ataca o fígado

sóbrio
por motivo de doença
esqueci como é que é
olhar pras coisas

deve estar escrito
nas estrelas que são
o livro da vida e deus
sim é que é escritor
que o meu papel neste mundo seja este

branco e rasurado
planando aberto no vácuo
em que viajam competentes
o sol e os planetas

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

tradição, família, propriedade

já que
eu nunca
servi
pra essas modas
de macho
bombacha e pernas
abertas sobre
um cavalo
chegar e exigir
massagem nos pés
costure minhas meias
mulher
nasce
meu lado bruto
ordenha as vacas
espanta as galinhas
espera em casa
raspando do tacho
um novo filho
quem dera
eu nunca servi
pra essas modas de fêmea
também

minha bisavó
parindo no meio do mato
sob as parreiras

meu bisavô
dizendo que pra filho
não se mostram dentes

tanta rudeza veio dar
nesta flor de delicadeza que eu sou
acredita-se

me vissem
a carne mole, o olho fraco
me expulsariam da casa
meus antepassados

talvez vagando
de noite além da fazenda
eu achasse a clareira onde moram
meus outros parentes renegados

com certeza estão lá,
vadios, vadias, bichas, sapatões
vivendo uma outra rudez
colhendo um outro delicado

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

olá

ganhei de presente dos meus amigos uma lagartinha verde, sobre um pedaço de folha de alface agora quase murcha, dentro de um copo de vidro transparente.

observo a lagartinha por muito tempo. ela quase não se mexe, parece. ela não se mexe. mas se mexe, sim. é que ela come o tempo inteiro. e só sai do lugar para poder comer mais, em outro canto da folha que pra ela é enorme.

acho que botou um monte de ovos pretos pequenininhos. ou talvez seja o seu cocô.

andrea disse pra eu chamá-la de gertrudes. gosto do nome. mas tenho birra de gertrude stein, um pouco, e não quero ficar me lembrando dela o tempo inteiro.

poderia agora fazer uma comparação entre o método da lagarta e o de gertrude stein, mas tenho birra disso também. fico olhando a lagartinha e ela é tão sem vanguarda, tão sem humanidade, mas tão parecida com a gente. resolvi que ela é minha amiga.

obviamente ela não é. a lagarta vive um mundo sem amizade? acho que sim. mas mesmo esse é um dizer impreciso. pra chegar mais perto do mundo da lagarta, eu tenho que ir cortando as palavras.

a lagarta vive um mundo sem?

a lagarta vive um mundo?

a lagarta vive?

a lagarta?

tenho medo que ela morra. será que ela come folha mesmo murcha? vou viajar por vários dias e terei de pedir a alguém que cuide dela por mim.

mas um dia a lagarta vai morrer. provavelmente antes de mim. porque esses bichinhos vivem menos tempo que a gente. (será por causa do tamanho?)

aí tenho que me perguntar outra vez: a lagarta morre? a lagarta tem tempo?

a lagarta?

vou perguntando, e perguntando as perguntas, e assim chego numa partícula de impossível resposta. como saber as células da lagarta? se a lagarta sabe as suas células? e, se ela não souber, as células existem? me dê uma mesa de bar e a eternidade, que eu fico perguntando sem parar.

no entanto, a lagarta é um fato. ela pode até ter suas interrogações, mas isso é impossível eu saber. entre eu e a lagarta, há uma distância de dois palmos preenchida com perguntas mudas e invisíveis e respostas falsas que não serão respondidas. e, no entanto, a lagarta é um fato.

o que tenho é o meu olhar, que distingue uma lagarta verde-viva no verde moribundo da alface. tenho o sentimento e a consciência de me saber maior e mais duradouro que a lagarta, e responsável por esta que está no vidro, e a ideia melancólica, herdada, de que ela é mais feliz do que eu. e tenho a língua portuguesa, que por uma cadeia ancestral trouxe à minha boca e às minhas mãos a palavra que eu digo e escrevo e com a qual enxergo o verde dentro do verde: lagarta.

não lhe darei nenhum nome.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

método

(...) não está de forma alguma dentro das nossas possibilidades fazer entrar a realidade no sonho, nem o dia na noite.

Não basta observar cavalos durante o dia para infalivelmente sonhar com eles à noite (...)

(Henri Michaux, falando aos poetas)

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

exercício

diz que o corpo

são faz a mente sã

e que a minha depressão

tem uma barriga descuidada

exercitando-a, certamente

ela se torna esbelta e faz inveja

a todas as outras balofas depressões

terá um programa de ginástica na tevê

e um namorado rico e sorridente

caminhei quinze horas

sem sair do lugar

a minha depressão ficava vendo

na televisão da academia

um programa sobre os programas

preferidos de lazer

da depressão:

cinema, comida, shopping center.

quando cheguei em casa

com os músculos demarcados de histeria

fiquei ainda mais triste e não levantei da cama

por uma semana.

agora negociamos

quais serão os próximos passos

se encontramos um pé de alface

e o comemos ou pulamos dele

ou se esperamos que a alface nos encontre

meio decompostos depois de uma semana

mortos de toxoplasmose.

"muito trágico" a depressão me diz.

ela não adere às minhas ideias.

devo novamente calçar os tênis, calçar a vida

e mergulhar no dia sem colete salva-vidas.

mas meu corpo não espera que a cabeça se concentre

ele decide, sozinho, pequenos tendões, tipo uma casa

com cupim nas estruturas, mas habitada.

quando é hora de chamar a descupinizadora

já não há mais tempo: tenho que tomar

banho, me vestir, e sair para o trabalho

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

procuro eu lírico no dicionário, não consta, e ele me dá as entradas que mais se assemelham

empírico
eufórico
bulímico
butírico
enclítico
neolítico
oolíitico

Mais porcaria

Bem menos imoral é o pernil que eu tempero pro almoço. Tento entender de onde veio esse pedaço, do porco. Pernil, fica na perna, coxa. Limão, alecrim, pimenta-do-reino. Quem dá vida a um porco? Uma porca. Aos nossos olhos, são todos iguais. Que nem japoneses, chineses, tudo a mesma coisa. Deixo o pedaço de corpo marinando e entro no site de homens que querem sexo. Digito: japa. Começo a conversar com um. Tem 33 anos, mora com os pais, mas tem carro. Quando chega, é tímido e apressado. Eu pergunto se posso espremer limão no pinto dele. Se assusta, mas não tem muitos senões. Salpico também um pouco de noz-moscada e sal. Tempero bem o moço. Mas esta não é uma história policial. Nos lambemos, chafurdamos, cheiros, festa do gozo do corpo, depois arfados de cansaço, lambuzo, nos vestimos. Pergunto, já que estamos, se ele não quer ficar pra almoçar. "Vou fazer porco", convido. Não, obrigado, sou vegetariano. O que sobrou, guardei na geladeira.

Porcaria

Agora eu não sei o que faço com ele.

Uma faixa vermelha pinga da testa. Pá, serrote, noticiário, já vi tudo. Ela encara o corpo gordo do marido morto. "Muito, muito mais gordo". Devia ter brigado ainda mais com ele: pra que emagrecesse, e então ela o carregaria que nem saco de pão para o resto da vida. "Comer?". A ideia lhe deu nojo. Se você mata alguém e isso não estava previsto, quero dizer, se você não planejou muito bem antes, vamos admitir que é uma estupidez, embora seja impulso, não deu pra controlar, embora o controle também seja estúpido, mais esta, a vida não tem receita para nada. Também não o assassinato. Uma faca escorrega, o bolo não cresce, a massa desanda. Então é pensar - pense, pense - refazer tudo daqui pra frente e tentar - tente! - não cair nas garras da polícia.

Foi aí que ela se lembrou dos porcos.

"Porco come até osso", foi o marido quem disse. Ele gostava de colecionar histórias de crime. Se soubesse como morreu, ficaria muito animado. Mas não saberia, mesmo que vivesse. Olha os porcos! Ela gasta uma caixa inteira de lenços umedecidos pra limpar embaixo das unhas, as solas dos sapatos, o suor dos suvacos, o sangue coagulado. E fica olhando a vara, a pocilga, o persigal, festim, os guinchos se refestelando. Não sei se ela sente remorso, tristeza, vingança. Se está feliz? Os porcos estão? Só acontece o que acontece. Tipo essa náusea que ela agora sente, e entra no carro antes que vomite, vai embora. O cheiro, imagine. Ela já nem teria como se limpar.

só verá as asas

"Se você realmente quiser ver as asas de uma borboleta, primeiro você tem que matá-la e logo colocá-la em uma vitrina. Uma vez morta, e só então, você pode contemplá-la tranquilamente. Mas, se você quer conservar a vida, que afinal é o mais interessante, só verá as asas fugazmente, em muito pouco tempo, um abrir e fechar de olhos."

(Didi-Huberman)

terça-feira, 18 de setembro de 2012

uma casa inteira

João e Maria na floresta

vão deixando blogues no caminho

blog-blog-blog

os seguirão os passarinhos

Quando chegam no coreto

todos cantam Roberto Carlos

os passarinhos aplaudem

vamos fazer do coreto uma choupana

Peguem, peguem

folhas de banana

adobe azulejo chicletes

agora blogo aqui

http://umacasainteira.blogspot.com.br/

também

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

perigo: libriano

na vanguarda do zodíaco
e dos novos ciclos que nos cercam
farei meu nome a máscara
de guy fawkes
numa tradição sem freud

corre-se o risco
de uma tal identificação com o não self
que não haverá mais self to die

num jogo urgente de bibliomancia
o i-ching me deu o hexagrama 18
dizendo que o trabalho sobre o deteriorado
trará grande satisfação, e que será bom
"atravessar a grande água"

jesus era jonas
e pedro não tinha fé
meu nome é um peixe
que me cuspa

era uma vez

era uma vez

a vez

que a tudo dizia

"agora sou eu!"

mas ninguém lhe dava bola.

Quando todo mundo se distraía

lavando as roupas e fazendo comida

ou quando todo mundo se deitava na grama do parque

pra tomar o sol gostoso da tarde

se fosse outubro

aí a vez aproveitava

e acontecia.

Como estavam todos ocupados distraindo-se

ninguém via o que acontecia, exatamente.

Mas a vez se dava por satisfeita.

Um dia o cachorro, que estava se lambendo, teve um pressentimento!

Ele foi até a pia da cozinha, pulou em cima dela e ficou esperando.

Quando nós chegamos, todo mundo riu. Menos o cachorro, que nem abanou o rabo.

Ficou em cima da pia, esperando que alguém o tirasse de lá.

Aquele foi um dia muito MUITO ensolarado, e a vez nem deu as caras.

Devia de estar aprontando uma das suas.

Esses dias eu recebi um cartão-postal.

Dizia assim:

Aqui está muito legal. Sinto saudades, mas não sei se volto. Se cuida! Beijos!

Ass.: a vez.

O cartão vinha lá de Maceió.

Como eu nunca fui pra Maceió, resolvi cozinhar o almoço. Era a hora.

Foi aí que eu conheci essa outra amiga: a hora.

De hora em hora, ela diz assim:

"Agora sou eu!"

Mas agora, por exemplo, eu preciso trabalhar.

Então não posso te dar atenção, desculpa.

venham mais cinco

sábado, 15 de setembro de 2012

bagagem

acho que lançar-se
sem seguros direi ao meu filho
não é uma escolha
prudente

levei
comigo apenas
aquilo que ainda não
tinha

livre
na queda
é só um momento

no gesto
ele responde
não é a viagem
que morre
com a gente

a mordida

deram-lhe uns dentes
ao mundo e solto
passou a morder tudo

a boca
antes aberta e banguela
à espera
agora buscava
coisas mais duras
maiores que ela

roía histórias
de amor desencontrado
dessas que empoeiram
na órbita da gente

roía as canetas
com que se escrevem cartas
ao futuro no meio
do século passado

os dentes
enquanto não gastos
e firmes transformam
o sólido
em massa com sabor
de saliva

e o mundo
predador tanto comeu
que tornava-se presa
às vezes
de uma disenteria

*

o que
você morde
te faz
mais forte

se você
morde uma pedra
seu dente
já era

nossa carne tão mole
parece dizer morda-me

nossos ossos tão duros
não cedem a qualquer fome

método

sem método

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

a fossa treme

desertaram

mil a cidade

pássaros

os ninhos onde

antes era

escritório

criminalidade

a terra

reusou

detritos e as pessoas
abduzidas pelos discos
ou o quê

nesta

espaçonave

esférica

dar

bom-dia

a

tudo

que

decide

nascer
a maya me deu um desenho
lindo uma recortagem
em que os mapas do brasil e da argentina
se sobrepunham
eu pus na mochila e trouxe pra casa

como na época eu não tinha casa
hoje fui procurar o desenho e não o acho
não sei nem pôr em palavras a tristeza
que isso me causa

é fácil dizer que é bem simbólico
de eu ter que sair da argentina às pressas
e voltar pra cidade de são paulo
tendo a maya me dado o presente no rio
quando eu estava com meu namorado à época
e não planejava viver tanto
quanto estou vivo agora, depois de meu namorado
carioca ter me dado um pé na bunda
por eu ter contraído o hiv e garoava
fazia aquele calor de sempre
eu tinha uma febre insuspeita e por isso nem tomei cerveja
era a primeira vez que eu via a maya
depois de dois ou três anos de correspondência
e gostei muito dela
mas a vida é assim mesmo
chuva é o nome que se dá
a tanto pingo caindo ao acaso
que molha todo o chão e vira uma enxurrada
se não houver escoamento
só que eu preferia pelo menos
não ter perdido o presente
diz que ortega y gasset diz que o que diferencia
o ser humano dos outros animais
é a capacidade de ser triste
já que a gente sabe nossa própria falha
e nossa incapacidade de ir além
minha cachorra deitava-se na porta
principalmente em dias de temperatura amena
e seu focinho secava, ficava morno
porque ninguém ia passear com ela
nós a amávamos tanto
mas não o bastante para sair com ela
da frente da televisão
ficávamos tristes e tontos vendo tv
e a cachorra triste e entediada sem nada pra fazer
isso já faz uns dez anos
mais tempo do que eu ouvi falar desse ortega y gasset

domingo, 9 de setembro de 2012

o bruno diz que dorme
e tem insônia e nela um sonho
em que eu passo por cima dele
fisicamente e isso amaldiçoa
que a pessoa nunca mais
cresça

é uma superstição de criança
um dia eu fiz sobre meu primo paulinho
me deduraram e os adultos deram de ombros
as crianças ofendidas
pois eu fizera crime horrível

meu primo cresceu e entrou pro exército
ou virou empacotador de mercado
perdemos contato

o bruno veio dirigindo desde belo horizonte
no meio do caminho comprou queijos e doces
de leite pela estrada, fuxicos, artesãs
e também mudas de rosas lindas
numa cidade chamada perdões

sábado, 8 de setembro de 2012


o desafio
agora
de escrever
é não escrever literatura
muito menos cartas que não merecem

pirei os mapas
com álcool e fósforo
em outras sociedades
talvez um mapa seja a folha
de uma árvore específica
passado de avós a netos
o conhecimento dos caminhos

quero viver o bastante
para tatuar todo o meu braço
ou pra perceber
que isso não será necessário

se tenho um lapso
entre a vontade e o piparote
o desafio agora
de escrever não será mais
a vontade o piparote
sempre foi
sempre será?
não sei o lapso

viver
um verbo vasto
meu medo
não morrer logo
meu medo
verbo perder
o tempo

colei com massa
inodora as fotos
na parede o mar
do chile quando
eu saí primeiro
deste país
e vi o pacífico
da praia feia
para provar
que o mar é água
em toda parte

meu medo então
fotos e histórias
uma estrada
quase me matam
caminhões

se tenho um lapso
o desafio agora
escrever sempre
é outra estrada